Sunday, March 18, 2007

Diário de Bordo #7

Dificilmente alguém perceberia o que lhe passava pela cabeça. Já tantos como ele, e tão perto, tinham cedido. Insistiam com ele, até! Perguntavam se não via as infinitas mãos de Deus Nosso Senhor em todo aquele movimento de pessoas a que muitos gostavam de apelidar de Fé: movimentos de Fé, diziam. Mas ele sabia que não era Fé o que os movia. Nem Fé, nem nada que fosse para além duma total falta de crença em tudo. De desespero. E então viravam-se para Deus. Chamavam Deus. Pediam a Deus. Porque nas suas cabeças Deus existia limitado a um desconhecido que, lá bem longe, tinha poder sobre tudo e todos. Porque para eles, deus não era mais do que um nome que se enquadrava no indefinido e incerto que é a vida. Soubessem eles que Deus é mais. Conseguissem eles ver para além da pobreza que era a sua vida. Acreditassem eles em Amor nos momentos de tristeza, de solidão, de miséria e aí sim, falariam de Fé!
Mas insistiam com ele. “O Senhor Padre não vê...”, “O Senhor Padre não sente pena...”, “o Senhor Padre não se compadece..” – logo a ele, que tudo via, a quem a pena arrancava dores ao coração, cuja compaixão o atirava para o meio rua, alvo de gozação e chacota... Chegou a um tal ponto em que se tornou impossível. Já todos os outros padres o tinham feito e continuava sem chover uma só gota de água. Agora só a sua negação era apontada como causa para uma seca que durava há já tempo demais. Era claro na cabeça de toda a população que não chovia porque “o Senhor Padre se recusa a celebrar uma Missa e uma Procissão para que chova”.
Ele cedeu. Concordou com tudo: Missa, Procissão, demais rezas e orações. Mas não se deixou vencer. Obrigou-os a prometer que era Fé o que os movia, que era por Fé e Amor a Deus que no Domingo se apresentariam todos para pedir que chovesse. “É Fé, Senhor Padre, já lho garanti em Confissão... e em Confissão a gente não mente!” Que saberiam eles de Deus, pensava, eles que se esforçam tão pouco por saber dos homens? E como chegar a Deus sem ser pelo filho?
No Domingo a aldeia vestiu-se de gala. Ninguém faltou! Todos se apresentaram à uma da tarde, como combinado, para o início da Procissão. Começaria com Missa por instruções do Presidente da Junta. “Com Missa tem mais poder junto de Deus Nosso Senhor”, afirmava. “Mais poder...” pensava ele. Mais poder do que o choro de uma criaça? Do que o pedido de um Santo? Que poder achariam eles que a Missa tinha? Um poder externo a qualquer um deles... mas Deus está e faz-se tão presente em cada um de nós. Como conseguiam eles não ver?
A Missa começou. A Capela transbordava e do centro do altar ele observava cabeças a perder de vista pelo campo avistado para lá da porta. “São milhares, Senhor Padre!” Milhares não seriam, mas estavam lá todos. Absorto nos seus pensamentos, o tempo foi passando. As pessoas entrando e saindo do altar. Agora, o ambão esperava-o. Não a ele, mas a Deus, o verdadeiro e único Deus, que em vão tentava entrar-lhes pelo coração.
Acabou de ler. Regressou ao altar. Fez silêncio. Tentou olhar a todo e cada Homem nos olhos. Encontrou ansiedade e avidez pelas suas palavras. “Concordei, ao fim de algum tempo, em celebrar esta Missa e conduzir a Procissão que se segue, para pedir a Deus que nos dê água este Verão... Fi-lo, porque me garantiram que era Fé o que vos movia” – olhou para a primeira fila onde um conjunto de homens alinhados e bem arranjados acenava “que sim” com a cabeça. E estavam lá todos: o Presidente da Junta, o Responsável da Organização, os Membros das Famílias Mais Respeitadas e o Médico da Aldeia – “É Fé o que vos move?”, perguntou. Ouviu-se um “sim” timido a sair da boca das pessoas.
“É Fé o que vos move?” Desta vez sentiu-se gritar, sentiu-se perder o controle sobre si. O povo acompanhou o grito respondendo “SIM”!

“Mas se é Fé, porque não trouxeram os chapéus-de-chuva?”

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